"BIOGRAFIA"

António Pinto da Rocha

António Júlio Pinto da Rocha, Dr. Licenciado em História - nasceu a 24 de Abril de 1952; em S. Mamede Ribatua, Concelho de Alijó (Trás-os-Montes), à beira dos rios Douro e Tua. Professor do Ensino Secundário.
Foi emigrante no Luxemburgo, durante largos anos, sempre ligado ao ensino.
Membro de "Confrades da Poesia" em Amora / Portugal
 
Bibliografia:
Viagens Singulares (Contos); 1990 - Monografia de S. Mamede de Ribatua; 1993

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O Mafarrico
 
Metro e meio de brejeirice. Descaradamente troçava, com o mesmo à vontade, da cobardia humana e do furor divino. Joaquim Maria de sua graça.
_ Então quando morre, sor Joaquim? – Espicaçava-o, de riso aberto a bailar nos olhitos ávidos de gozo, o patifório do Padre Nunca.
_ Ainda esta noite vi a morte. Era uma fêmea tão boa!... – Suspirava reinadio.
_ E ela não o levou! Olhe que não costuma…
_ Tens razão. Mas eu fiz-lhe uma cócegas pela espinha abaixo… Gostou tanto que me disse, a tremer como varas verdes: Ai filho! És tão bom que te deixo no mundo mais uns dias.
Também, se por acaso o nome do Tentador era evocado, no intervalo da sueca, o mafarrico do velho escandalizava os compinchas boquiabertos com a absurda esperança de, a troco da alma, o castigar a uma semana de cava, no inferno da Fraga, com a cigarra a malhar-lhe aos ouvidos: cri! cri! cri!, numa sinfonia de loucura.
Mas como muito bem sabem, o diabo tece-as. E numa noite de lua nova mais negra que azeitona madura, caprichou:
Triunfante, no regr4esso da pesca, pelo Lapagão, o Macieirinha linguarudo, auto denominado e reconhecido pai das enguias, rei da água doce e vassalo da aguardente, trauteava modinhas fanhosas, a adocicar o calvário do caminho.
Já na quelha do Alvaredo, o gabarolas do rouxinol, inesperadamente, perdeu o pio, estremecendo como se atingido por traiçoeira descarga eléctrica e estarrecido estacou, sem pinga de sangue, de pés e mãos atados pelo pavor. Em breves fracções de segundo, porem, o instinto de sobrevivência acorreu em seu auxilio, sacudindo-o tão sem jeito da letargia momentânea, que o pescador, em direcção a casa parecia um galgo. Até o santo Mamede no seu nicho de justo, franziu a testa a magicar o motivo da tresloucada corrida.
Arribou a porto seguro mais branco que a cal e de verbo congestionado.
_ Que tens homem de Deus? – Inquiriu condoída a mulher, alarmada pela sua palidez de cadáver.
_ Noooo… Nooo… -  tentava desembuchar.
_ Nu! Quem é que viste nu?! – Interrompeu a tia Fernanda, sem paciência, já com a mostarda a subir-lhe ao nariz, a cheirar história de saias. Era a flor das donas de casa, poupada e carinhosa como nenhuma, mas em matéria de ciúmes nem na mãe confiava. Também ninguém é perfeito. Não lhe queiramos mal por isso.
_ Noo… No ce..mi.tério ouvi uma alma do outro mundo! – Desempanturrou por fim o infeliz.
Ainda mal o Sol pincelava de ouro abismos e serranias para as bandas de Tralhariz, já a esposa excitadíssima saudava na Atafona, a comadre Isabel, quarentona singular, um pauzinho de virar tripas, e num fôlego disparou-lhe à queima roupa a novidade:
_ Ai Jesus! È desgraçado que não cumpriu promessa… - sentenciou sisuda a amiga, na sua voz de falsete.
E como língua de comadre recatada,  se encontra mais raramente que água no deserto, a notícia, em velocidade supersónica, repisou os caminhos do Compasso, em época pascal. Os paroquianos acolheram-na, ora atónitos ora indiferentes, divididos entre a credulidade e o cepticismo.
Desgraçadamente, o pior ainda não viera. À noite, Ribatua refugiava-se, mais cedo, nos prazer4es dos lençóis, e o Fundo do Povo parecia ermo amaldiçoado. Silêncio e mais silêncio, entrecortado apenas por uivo de cão agoirento ou correria de gato caçador. È que com defunto à solta nem os pobres se sentiam seguros.
O temor afugentava a freguesia do fornito vizinho da igreja. Cada vez se comia menos a deliciosa bola rescendente cozida a esteva do Bouço. Coitada da padeira!
A tia Maria, uma jóia de bondade, decerto não merecia mais esta provação. Outro dia o egoísta do marido fugira dos trabalhos deste mundo, legando-lhe as canseiras do sustento de cinco bocas insaciáveis. Agora esta história de vozes… Mas que raio de sorte!...
_ Isto é demais. Esta noite, vou saber quem é! – Decidiu-se ela a caminho do ribeiro, um Nilo em miniatura, bálsamo estival de campos ardentes e que agoniado pela peçonha de certas lavadeiras apressa o passo e, como demente, precipita-se em ravinas colossais até morrer nos braços do rio Tua.
Pelas trindades, serviu as batatinhas com 2 ovos da galinha pedrês, cortados em fatias repartidas religiosamente, sem carne nem peixe que mimos de rico não enfeitam a mesa da pobreza. Sonhavam regalados os cachopos, talvez com nuvens de maná, quando ela aconchegou os ombros cansados com o velho xaile preto e, fortalecida com o seu terço, bálsamo de aflições, saiu fechando suavemente a desengonçada porta de pinho que chiou incomodada no seu crónico reumatismo, que os anos já lhe pesavam.
Sombra na sombra da noite, cosida ao muro da Cortinha, descia a Seara, a passinho de veludo, lento e silencioso, com o Credo na boca, receosa de encontrar víbora de duas patas que cuspisse sobre ela a fama de imoral. Sorte madrasta Mesmo o próprio Pedro, seu santo querido, a perseguia com a ameaça de arraial mais barulhento que o da romaria de Setembro.
Angustiada, respirava oprimida o ar de chumbo. Para os lados do Carpinteiro, relâmpagos medonhos rasgavam zangados o céu furioso, seguiam-se-lhes trovões infernais que a arrepiavam e da sua fronte em fogo desprendiam-se gotículas de suor baço e frio. Daí a pouco, pipas e pipas de água desabariam sobre a povoação. De sangue gelado, derrotada pela Natureza e aceitando a fatalidade do destino, recua, vergada pelo desgosto do insucesso. Nisto:
_ Racho-te, meu estupor – era o António da Horta que no seu casebre lia a cartilha à tia Felismina, descarregando na pobre o azedume da enxada.
A senhora Maria como que ressuscitou. A voz de homem rompera a teia da solidão. Um raio de sol a esconjurar fantasmas. Embora inquieta fez das tripas coração e lá avançou corajosamente.
Colada à parede do cemitério viveu minutos de eternidade. O perfume inconfundível de alecrim bento queimado, nas casas vizinhas, em honra de Santa Bárbara, protectora dos malefícios da trovoada, avivava-lhe receios, torturava-a, petrificava-a. Bruscamente, ouviu horrorizada o sino da torre a badalar sádico 12 horas, metálicas, aflitas, sinistras.
E, como o medo é camisa de herói, o coração quase lhe saltava do peito, derrubado o seu ânimo de granito, ao aperceber-se de uma voz abafada, em vinho da Estante, que em Ladainha murmurava:
_ Em nome do meu pai… Padre Nosso… Em nome da minha mãe… Ave Maria…
Espantada, reconheceu o patife do Joaquim Maria e livre do pesadelo, a nossa Maria da Fonte rugiu-lhe vitoriosamente:
_ Em nome da grande puta que o pariu! Seu Borrachão!...
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O Passageiro do Sud - Express
 
Singular aquela tarde de Maio! Divina mesmo não fora a meia dúzia de cinzentos ferretes a macular o azul do firmamento da Atafona.
O sol maneirinho escorria docemente pelas ladeiras de xisto para a garganta do velho Tua na volúpia de um vintage.
Era tempo de pica-boi! É que os indefesos pâmpanos dos esperançosos vinhedos da Atafona reclamavam sulfato... Toda a santa manhã, braço excluído do Rendimento Mínimo – até o mais raquítico – espadeirara valentemente contra o maldito míldio invasor.
Mal o dia abria o olho, até o tio Bernardo sulfatara o Guarda-Virgos que ainda se perdia. Mas qual o quê! O filho cobriu a cabeça com o lençol, rolou para o outro lado que a sua vocação era outra…
O eunuco, guardião das honras, não monopolizava a ociosidade: Tempo novo; homem velho no campo e homem novo na cama!
Agora, em tempo de trégua, os corpos moídos convalesciam no doce gozo da merecida sesta.
Mas nem todos!...
 
 
   
 
 

"CONFRADES DA POESIA"

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